Muitos profissionais já destacam o que será tendência para a área de recursos humanos em 2021. A Diversidade e Inclusão, que a alguns anos ganhou destaque nas empresas, agora não estará apenas no campo da sensibilização ou em campanhas com # em datas comemorativas. Agora o que contará são as ações realizadas para a mudança e o acolhimento fatídico, e não apenas em promoções.
Dentro dessa tendência, um dos pilares da diversidade que ainda não foi bem elaborado pelo ambiente corporativo, é a neurodiversidade. Você já ouviu falar sobre?
Neurodiversidade é o movimento de entender que profissionais com distúrbios neurológicos, como dislexia, autismo e TDHA, precisam ser incluídos no ambiente corporativo também, com ações efetivas.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 70 milhões de pessoas no mundo tenham autismo, sendo 2 milhões delas brasileiras. O autismo considerado leve, ainda é muito estigmatizado no social. Muitos profissionais de RH ainda não sabem por onde começar para transformar os processos seletivos mais abertos à neurodiversidade.
Para nos ajudar a entender mais sobre esse distúrbio neurológico, e também termos contexto para criamos ações efetivas de inclusão no ambiente de trabalho, convidamos a profissional de Designer, Joyce Rocha, para nos contar um pouco sobre como foi chegar até o diagnóstico de autismo, e também como as organizações possui grande importância para que mais profissionais autistas sejam inseridos no mercado de trabalho.
Conta um pouco sobre você:
Meu nome é Joice, tenho 28 anos. Sou diagnosticada com autismo já faz quase 6 anos. Meu diagnóstico saiu com 20 poucos anos, ou seja, na minha fase adulta. Trabalho atualmente como UX, e trabalho muito com foco na área de pesquisa, researcher, e com o olhar bem atento na questão da acessibilidade digital. Esse tema, acessibilidade, sempre foi algo que me mobilizou, até mesmo devido às minhas particularidades. Além do autismo eu tenho uma síndrome rara, que é uma questão cognitiva também, e está dentro da neurodiversidade. É a síndrome de Irlen, que afeta diretamente minha visão, e eu preciso usar lentes especiais, por causa dessa minha característica. E além dessas peculiaridades, possuo uma doença na córnea, chamada ceratocone, que se desenvolveu por causa da Irlen. Eu sempre tento trabalhar o tema acessibilidade em todos os lugares que estou, pois é algo que afeta o meu cotidiano, afeta meu dia a dia e não dá para simplesmente ser barrada por não ter acessibilidade e espaço para eu ser incluída. E vejo em um parâmetro geral, não somente no autismo, vejo que essa dor não é só minha, mas de milhares de pessoas que não possuem um mínimo de acesso e de inclusão em todo aspecto da nossa vivência em sociedade.
Como foi para você ao receber o diagnóstico?
Eu fui diagnosticada com 21 anos de idade, na época eu estava em um quadro depressivo, porque eu não sabia as minhas particularidades. Havia muita coisa que estava dentro do espectro, que eu não entendia, principalmente interações sociais. Essas barreiras me levaram a um estado depressivo. Me recordo de ter tido uma crise e fui encaminhada para uma UBS, no bairro em que eu morava, e passei com o psiquiatra. Quando ele pegou minha ficha, que continha registros e exames desde os meus 7 anos, ele começou a avaliar minha crise e tudo que continha ali, ele levantou a suspeita que eu poderia estar dentro do espectro. Eu lembro que foi muito importante, porque ele era especialista em autismo, e ele estava por acaso atendendo, e ele atendia uma vez ao mês apenas. No dia seguinte eu e minha mãe receberia a visita da agente de saúde, e eu lembro que foi a agente a enfermeira e o médico psiquiatra. Levei até um susto! Ele conversou comigo e com minha mãe por uma hora e depois da conversa e de toda análise da minha ficha, ele fechou meu diagnóstico.
Foi muito marcante, porque eu tinha muito medo de psiquiatra, por tudo que havia visto alguns amigos terem passado e lembro que eu estava chorando e tão assustada, que antes de ele ir embora ela me abraçou e falou que eu não estava sozinha. Foi marcante por eu ter recebido um diagnóstico dentro do sistema público de saúde, que eu acho um grande privilégio porque faltam profissionais capacitados para diagnosticar o espectro e profissionais empáticos. Até hoje eu passo com ele, e digo que foi uma grande virada na minha vida depois que tive o diagnóstico fechado.
Em um processo seletivo, você já foi prejudicada por ser autista? Como o recrutador pode tornar um processo seletivo mais inclusivo na sua opinião?
Em processos seletivos eu sentia dificuldade antes do meu diagnóstico porque eu não sabia das minhas características, que tem muito a ver com interações sociais, e de certa maneira me prejudicava na questão que existe muito tato social, e muita comunicação subjetiva, que é muito difícil para quem possui espectro entender. Trocando informações com a comunidade autista, a maior barreira é que dentro dos processos seletivos, os recrutadores não estão preparados para avaliar o conhecimento técnico, e construir uma conexão para a interação social. Estamos muito mais para mostrar nossos conhecimentos técnicos, do que uma interação social. E isso conta muito, até porque dentro do processo seletivo, o recrutador avalia a interação com ele e as outras pessoas. A avaliação vem dessa conexão, mas no autismo a interação social é um processo e não é instantâneo, existe uma barreira Não vou dizer que o autista não tem a capacidade de se conectar com as pessoas, mas é um processo muito demorado, que precisamos respeitar. Eu passei por isso, muitas pessoas passam, porque as pessoas estão tão focadas em apenas selecionar ali com a interação, e acabam deixando passar os conhecimentos técnicos que são tão valiosos quanto essa interação do momento. E nisso os recrutadores perdem bons profissionais.
O que é necessário pensar para estruturar um ambiente inclusivo nas organizações?
Primeira coisa para deixar o ambiente inclusivo, é contratar pessoas dentro da diversidade. Digo não só pessoas com deficiência, mas todos os recortes de diversidade que tanto falamos: movimentos LGBT, raciais, movimentos trans. É o quanto estamos abrindo portas e possibilidades para contratar essas pessoas. Como estamos criando um ambiente de processo seletivo, que a gente tire os vieses inconscientes que existem. Quantas vezes vi oportunidades com foco em diversidade, mas que pedem inglês fluente, e isso já exclui muitas pessoas. Esquecem que isso é privilégio de algumas pessoas. Pensando em recortes socioeconômicos, até por minha experiência, que vim de uma família humilde, às vezes ganhava meu salário, mas não conseguia colocar o inglês por ter outras prioridades, tinha contas em casa para priorizar. Isso é um exemplo de exigências que excluem. Esquecemos que nossa bolha não consegue alcançar o outro, e isso dificulta a inclusão. Primeiro ponto então é conseguir deixar acessível os ambientes. O outro ponto, além de contratar mais pessoas, quando essas pessoas forem contratadas, precisamos observar todo contexto e criar ações de apoio, tanto no aspecto técnico como no social. Devemos entender como podemos apoiar e dar suporte a essa pessoa. Muito difícil falar se isso é certo, ou errado, porque é muito de pessoa para pessoa. Eu acredito que o melhor lugar inclusivo, é quando a gente se abre para ouvir a outra pessoa, para entender a vulnerabilidade dela, a fragilidade dela, para conseguirmos quebrar as barreiras. No caso de autismo, ou seja, no meu caso, o que me trouxe uma qualidade de vida aqui na Zup, foi justamente o home office. Isso muito antes da covid. Fui contratada já sabendo que poderia trabalhar de casa, e isso trouxe uma grande qualidade de vida. Uma pequena adaptação que fez grande diferença dentro da minha entregável. Minha entrega não é diferente dos outros, mas o ambiente que me colocaram, que pude me desenvolver, e que eu fui ouvida, isso foi positivo. Fez diferença tanto na minha saúde física e mental e também em relação a minha entrega e a todo ambiente que estou inserida hoje.
Hoje, você consegue identificar empresas que trabalham ações inclusivas em neurodiversidade?
Eu percebo que tem iniciativas das Specialisterne, multinaciional que está no brasil. É uma organização que mobilizou algumas empresas de tecnologia, no aspecto internacional como a SAP, que levantaram a cultura da diversidade, e pensando na neurodiversidade. Vejo empresas de tecnologia que já possuem iniciativas como a SAP, IBM.. que começaram a criar ações e compreender mais o assunto. Neurodiversidade é um assunto muito novo, é um assunto que surgiu no USA e a pouco tempo. Por isso é muito mais fácil ver iniciativas em multinacionais, porque como é um movimento que veio de fora, tem poucas iniciativas. As pessoas começaram a compreender agora. Eu tenho esperança que talvez dois ou três anos, essa questão de falar sobre neurodiversidade, mais conhecimento e informação sobre esse tema, vai ser um passo muito importante antes de pensarmos em ação. Quando as empresas tiverem mais informações sobre a temática, então poderemos pensar em ações muito mais assertivas para incluir a neurodiversidade como um todo. A neurodiversidade não é apenas autismo, a neurodiversidade é diversidade de pensamentos. É a cabeça que funciona diferente. Então não é apenas o espectro autista que está nesse grupo. Pessoas com TDH, dislexia, depressão, ansiedade, síndrome de Irlen. Todo esse grupo de pessoas faz parte da neurodiversidade. Então precisamos perguntar, o quanto estamos observando essa diversidade de pensamentos, dentro das organizações. E o quanto estamos adaptando e respeitando as necessidades de cada pessoa. Falamos muito de deficiência, mas falar de neurodiversidade, é um outro lugar, outro espaço, outra ordem, que precisamos entrar em discussão para cada vez mais deixarmos o ambiente mais diverso, para toda diversidade humana.
Quais ações dentro de uma empresa, fariam a diferença para profissionais neurodiversos?
Primeiro levar o assunto para dentro da empresa. De vez em quando eu toco nesse assunto na ZUP, e é muito interessante tocar na temática, porque já tive uma colega que tem dislexia e não sabia da existência da neurodiversidade. Ela se identificou muito com minha fala, com a troca. Ela nem sequer sabia desse conceito, e às vezes acabamos tentando moldar nosso comportamento para ser aceito na sociedade. Nós vimos isso em outros movimentos da diversidade. No movimento LGBT, quantas pessoas estavam e viviam dentro do armário, se moldando a um padrão para conseguir ser aceito, pode ser aceita. Pessoas trans que se escondiam. A neurodiversidade, eu vejo como se estivesse no passado, e as pessoas não têm a consciência de pode sair desse armário e mostrar sua diversidade de pensamento. Nós vemos muitos movimentos saindo do armário, mostrando sua identidade sem medo, tentando de fato criar a inclusão. A neurodiversidade antes de falar de ações, temos que passar mais conhecimento e informação sobre a temática dentro das instituições. Quando falamos no século XXI onde grande parte da população mundial sofre de ansiedade e depressão, muito focado na saúde mental. Não adianta falar de Setembro Amarelo e suicídio, se não falarmos de prevenção, cuidados, e adaptação para conseguirmos receber e aceitar essas pessoas. É algo importante que não está focado apenas no autismo, é tudo que a gente pensa, sente, e muitas vezes não levamos em consideração por preconceito, e precisamos mudar esse pensamento. Principalmente a diversidade de se pensar.
Qual recado você gostaria de deixar para profissionais que buscam atualmente criar o pilar da Neurodiversidade dentro das organizações?
As empresas que querem criar o pilar de neurodiversidade, e até pensando nos outros pilares criados, o primeiro passo é o conhecimento, é a informação. É entender o que é essa neurodiversidade. Olhar em volta! Perceber quantas pessoas neuro diversas está no nosso cotidiano. Está em nossa vida. Está com a gente. É perceber, entender, conhecer, compreender e depois construir com precisão esse pilar quando estiver com conhecimento. Sem conhecimento não vamos conseguir construir de maneira assertiva esse pilar. Só vamos construir um pilar forte sobre essa temática, quando tivermos domínio sobre.